LIBERALISMO
Os filósofos, sociólogos e economistas do século XVIII e do princípio do século XIX formularam um programa político que serviu como diretriz para a adoção de políticas sociais, primeiro na Inglaterra e nos Estados Unidos, depois para o continente europeu, e, por fim, também, para outras partes do mundo. Mesmo na Inglaterra, que tem sido chamada a terra natal do liberalismo e um país liberal modelo, os proponentes das políticas liberais nunca lograram alcançar todos os seus propósitos. No resto do mundo, apenas partes do programa liberal foram adotadas, enquanto outras, não menos importantes, foram rejeitadas de princípio, ou descartadas após algum tempo. Será apenas com um certo exagero que se pode afirmar ter o mundo, alguma vez, vivido uma era liberal. Nunca se permitiu que o liberalismo fluísse totalmente.
Em que pese ter sido breve e muito limitada a supremacia das ideias liberais, ainda assim foram suficientes para mudar a face da terra. O desenvolvimento econômico ocorrido foi extraordinário. A liberação do poder produtivo do homem fez multiplicarem-se, em muitas vezes, os meios de subsistência. Às vésperas da Grande Guerra, que foi, ela própria, resultado de uma longa e acirrada luta contra o espírito liberal, e que apressou o período ainda mais amargo de ataques aos princípios liberais, o mundo encontrava-se incomparavelmente mais povoado do que nunca, e cada habitante podia viver de modo incomparavelmente melhor do que nos séculos precedentes. A prosperidade que o liberalismo criara reduziu consideravelmente a mortalidade infantil, que se constituíra impiedoso flagelo em épocas precedentes, e, como resultado da melhoria de condições de vida, fez ampliar a expectativa média de vida.
Não se diga que tal prosperidade apenas tivesse fluído para uma seleta classe de privilegiados. As vésperas da Grande Guerra, o trabalhador da indústria nas nações europeias, nos Estados Unidos e em possessões inglesas d’além-mar, vivia melhor e mais prazerosamente do que um nobre de não muito tempo atrás. Não apenas podia comer e beber segundo seus desejos, mas podia dar aos seus filhos uma educação melhor. Podia, também, se o desejasse, fazer parte da vida cultural e intelectual de sua nação e, caso possuísse talento e energia suficientes, podia, até mesmo, sem dificuldade, alçar a uma posição social mais alta. Era, precisamente, nos países que mais profundamente adotaram o programa liberal que o cume da pirâmide social se compunha, essencialmente, não daqueles que, por força do berço gozavam de posição privilegiada, em virtude da riqueza ou da alta posição de seus pais, mas daqueles que, em condições desfavoráveis, encontraram a saída da pobreza por seus próprios meios. As barreiras que, em outros tempos, separavam senhores e servos haviam caído. Agora, havia apenas cidadãos com direitos iguais. Ninguém mais era prejudicado ou perseguido por sua nacionalidade, opiniões ou fé. As perseguições políticas e religiosas internas haviam desaparecido e as guerras internacionais começaram a tornar-se menos frequentes. Os otimistas já saudavam a aurora da Idade da Paz Eterna.
Mas certos eventos fizeram com que a situação se revertesse. No século XIX, surgiram vigorosos e violentos opositores ao liberalismo, que tiveram êxito em anular grande parte do que havia sido obtido pelos liberais. O mundo de hoje não quer mais dar ouvidos ao liberalismo. Fora da Inglaterra, o termo “liberalismo” está totalmente proscrito. Na Inglaterra, certamente, ainda há “liberais”, mas a maioria deles são-no apenas de nome. De fato, nada mais são do que socialistas moderados. Hoje, em qualquer parte, o poder político está nas mãos de partidos antiliberais. O programa de ação do antiliberalismo desencadeou forças que deram origem à Grande Guerra Mundial e fez, em virtude de cotas de importação e exportação, de tarifas, de barreiras à migração e de medidas semelhantes, com que as nações do mundo se colocassem em mútuo isolamento. Dentro de cada nação, tal programa levou à experiência socialista, cujo resultado tem sido a redução da produtividade do trabalho e o concomitante aumento das necessidades e da miséria. Aquele que não tenha deliberadamente fechado os seus olhos à realidade deve identificar, em todo lugar, os sinais de uma catástrofe que se aproxima na economia mundial. O antiliberalismo está dando lugar a um colapso geral da civilização.
Se alguém desejar saber o que é liberalismo e que objetivos tem, não poderá, simplesmente, voltar-se para a História com o objetivo de informar-se e inquirir sobre o que defendiam os políticos liberais e as metas que lograram alcançar, porque, em nenhum lugar, o liberalismo conseguiu executar seu programa tal como pretendia.
Por outro lado, os programas e ações dos partidos que hoje se denominam liberais não nos podem fornecer luz alguma, no que se refere à natureza do verdadeiro liberalismo. Já se mencionou que, mesmo na Inglaterra, o que se entende por liberalismo, hoje, guarda semelhança muito maior com o torismo e com o socialismo do que com o velho programa dos defensores do mercado livre. Se há liberais que achem compatível com seu ponto de vista liberal endossar a nacionalização de ferrovias, de minas e de outros empreendimentos e, até mesmo, propugnar tarifas protecionistas, pode-se facilmente verificar que, hoje em dia, nada restou do liberalismo, a não ser o nome.
Ademais, nem mesmo é suficiente, hoje, formar-se uma ideia do liberalismo, com base nos escritos de seus grandes fundadores. O liberalismo não é uma doutrina completa nem um dogma imutável. Pelo contrário, é a aplicação dos ensinamentos da ciência à vida social do homem. Assim como a economia, a sociologia e a filosofia não permaneceram imutáveis desde os dias de David Hume, Adam Smith, David Ricardo, Jeremy Bentham e Wilhelm Humboldt, assim também a doutrina do liberalismo é diferente hoje do que foi à sua época, muito embora seus princípios fundamentais tenham permanecido inalteráveis. Durante muito tempo, ninguém tomou a si a tarefa de apresentar uma exposição concisa do significado essencial dessa doutrina. Isto pode justificar nosso presente esforço em fornecer justamente este trabalho.
MISES, L. V. Liberalismo - Segundo a Tradição Clássica / Ludwig von Mises. -- São Paulo : Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. 125p. Tradução de: Haydn Coutinho Pimenta.
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